sexta-feira, setembro 11, 2009

Help!


O beatlemaníaco é xiita. Ele quer o que os Beatles fizeram, como fizeram e como quando fizeram. O tempo congelado na década de sessenta. Isso dizem os que costumam tachá-los, pejorativamente.

Sob a visão de um deles (de um beatlemaníaco, não de um Beatle), nada mais natural que isso. Afinal, só perduram pela genialidade do que fizeram, como fizeram e quando fizeram.

Certamente hoje, qualquer adolescente, aprendiz de guitarra, tocará melhor do que John Lennon. Porém, nem o hoje, do século XXI, nem qualquer outro século produzirá outro John Lennon.

Portanto, quando quero (e sempre quero) ouvir Beatles, reporto-me aos meus bons e velhos, porém originais, long-playings de vinil. Qualquer versão acaipirada, techno, hip-hop, zouk, ou o que seja, são puro lixo.

Palavras de um xiita.

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Sou essencialmente fundamentalista em relação às Arcadas. Pelo exposto acima, tenho prática nisso. E estou bastante longe daquele famoso adágio: “não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho”. A razão, bastante também simples: busco as coisas que amo. E a elas dedico o meu amor, não porque as conquistei, mas porque busquei-as para amá-las. Uma lógica compreensível apenas a quem está acostumado a realizar sonhos.

Usando frase devidamente expropriada, posto que em domínio público: ser aluno das Arcadas é mais do que realizar um sonho. É viver um sonho. Sua insondável e inesgotável História está impregnada e se faz de uma grandeza ímpar, apenas comparável à grandeza da história individual de seus alunos, que farão a grandeza dela.

No Caminho de Santiago existe um monte, onde está, no topo de um mastro, uma cruz, símbolo do venerado percurso. Tal monte é composto de pequenas pedras. Pedras estas que foram depositadas, uma a uma, por cada um dos que ali estiveram.

Isto é Arcadas. O fundamentalismo franciscano fica por conta de aqui estar para apreender a sua grandeza para torná-la sua. E depois, ao construir a sua própria História, ser mais uma, nesse Jardim de Pedras. Fazendo parte Dela.

A analogia com os Beatles é apenas parcial. Para me imiscuir nesse sonho posso apenas fazê-lo ouvindo-os. Platéia. Aprendiz. De maneira xiita, essencial, fundamentalista, sorvendo apenas o mais puro original deles, tal qual viveram aquela mágica e misteriosa viagem, na qual fui passageiro (contemplado com um Ticket to Ride).

Para completar a analogia: ser aluno das Arcadas é como se, numa operação esdrúxula e surreal, pudesse eu me tornar um deles. Pois o real nome da Faculdade da História é Faculdade (da soma das nossas) História. Assim como cada pedra depositada no monte do Caminho de Santiago.

Por isso, para um franciscano fundamentalista toca o mais fundo do coração, ao ver passar meninos e meninas que vieram em busca da História da Faculdade. Não a encontrarão. Esqueceram de saber que lhes era condição vir apreendê-la para fazer a sua própria história, que seria dela. Aqui vieram apenas porque é uma escola muito-bem-paga-antecipadamente gratuita, que possibilita bons empregos e que é fácil passar de ano. Ah, e que aqui estudaram o Álvares de Azevedo, Fagundes Varella e Castro Alves!

Sairão dela como quem ouviu uma versão resmasterizada, adaptada, estilizada e “atualizada” de uma canção dos Beatles, em ritmo de forró, achando que conheceram a sua obra. Como diria o Batman: santa inocência!

Escrevo essas palavras ao tempo em que relançam, pela enésima vez, a coleção dos 13 discos dos Beatles. Agora estilizada, remasterizada, e o pior de tudo: “atualizada”. Para tentar acompanhar a genialidade daqueles fabulosos garotos, o cabalismo da data do lançamento: 9.9.9. Nove de setembro de 2009. Sem genialidades. A mim me lembra mais o espelho da Besta. Propala-se que, com as inovações tecnológicas, há melhora na qualidade, com eventuais correções. Desconsideram que a genialidade dos garotos fazia por superar, com o talento, qualquer inovação. Daí a maravilha da obra. Daí a permanência para todo o sempre.

Vivemos na Era do Replay. Mas com muita tecnologia. Isso sim! Obviamente comprarei a coleção. Mas, desta vez, apenas para constatar o crime que cometeram, ao corrigir as distorções geniais e propositais de Tomorrow never knows. Que Deus lhes perdoe. Não sabem o que fazem.

É garantido que, com um programa Autocad, pode-se projetar um monte muito mais belo e simétrico, naquele Caminho de Santiago, com as cores das pedras muito mais realistas do que a própria realidade. Não se duvida disso. Mas nada substitui aquele tosco pedaço de papel onde você esboçou, apenas com a ponta dos dedos, sujos de poeira e do próprio sangue, a visão do local onde você depositou a sua pedra, a compor o monte.

Por isso é que ser franciscano fundamentalista significa não apenas entrar para as Arcadas, mas ser parte integrante, atuante e criativo parcial de sua História. Aqui fica mais bem mais próprio o termo: XIita.

A consternação nessa lisérgica viagem analógica que faço, fica por conta de constatar a banalização dos genais garotos transeuntes franciscanos, tal e qual fizeram com a genialidade daqueles outros garotos, estes de Liverpool. É preciso torná-los assimiláveis ao grande público. Ao franciscano é preciso aparar as arestas da brilhante irreverência. É preciso banalizá-los, para que se tornem, tal e qual a manada subserviente, tão facilmente conduzíveis em sua passiva mediocridade.

Cruel a verdade daqueles versos: primeiro entram em seu jardim e lhe rouba uma flor... Esse foi o sentimento aflorado e germinador desses escritos: a implantação no Território Livre da bandeira que deveria ser da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas não é.

Sim. Primeiro, o Presidente do Povo providenciou a estratégica passagem das Arcadas ao domínio administrativo estadual. Depois tornou-se criatura da qual foi Criadora. Depois quiseram levá-la de seu berço esplêndido. Agora, fincaram a bandeira, possessivamente. Num depois, elegerão um franciscano para a gerência daquela. Franciscano esse não daqueles necessários, XIitas, fundamentalistas, mas um banalizado e “corrigido”. Depois, como não se disse nada, como nunca se disse nada, providenciarão a mudança das Arcadas para o Butantã. Franciscanos, que fizeram a História como atores, agora como mera platéia, estudantes de uma boa Faculdade.

E no Largo permanecerá um grande vácuo, vazio. Tal e qual o Ground Zero, depois do 11 de setembro. Talvez o prédio seja transformado em Museu. Exposto a visitantes curiosos, que nada enxergarão, além da beleza natural desse Pátio. Monitores contarão aos extasiados turistas com suas câmeras digitais sobre uma lenda que, nas sombras dessas Arcadas, existia o espírito franciscano que rondava por todo o prédio, iluminando cada aluno um brilhantismo muito especial. Certamente uma lenda apenas. Comprovado inclusive porque o espírito não saiu na foto. E sairão de lá felizes, acreditando que obviamente não existe mesmo nenhuma diferença entre aqueles Beatles intocáveis pelo tempo e os Oásis de hoje. E que franciscano é mesmo apenas um universitário como qualquer outro.

XI-h

AAArcadas, XI de setembro, CLXXXI