domingo, outubro 24, 2010

Os dois filhos de Francisco (ou: o Forum no XI)

Jornalistas escrevem assim: Forum da Esquerda vence em primeiro turno as eleições para o XI. Não sou jornalista. Aliás, um dos meus hobbies preferidos é apontar as suas frases ambíguas no twitter.

Sabe-se que existe uma região logo acima dos joelhos que, quando fletido a noventa graus e sendo pressionada pelos cotovelos, aciona uma desconhecida região cerebral que nos conduz ao devaneio, verdadeira viagem lisérgica. Esse fenômeno prescinde de intrincadas comprovações científicas, mas tem a sua realidade constatada assim que todos os mortais, e até os imortais, assumam essa postura. Nessa posição, jornal só vai servir mesmo é para encerrar ato tão necessário. Mas isso apenas em caso de banheiros públicos, fim de balada, coisa e talz.   Por isso que o abordado pela A LATRINA se presta, se é que presta para alguma coisa, a viajar lisergicamente pelo ai da coisa. Uma frase você lê em qualquer lugar.

Preliminares realizadas, podemos nos adiantar na coisa. Após o pagamento de resgate por três anos seguidos, agora franciscanos em liberdade abrimos caminho por um mar vermelho. Dilema equivalente só mesmo os norte-americanos têm, quando decidem pegar aquela auto-estrada que liga Boston a Chicago. Sai de uma e cai na outra. E vice-e-versa. Talvez franciscanos, na ressaca pós-Peruada, tenham  confundido entre “ébrios” e “hebreus”. Pode acontecer, sabia? Em se falando em Peruada, tudo pode acontecer...

Filhos da São Francisco são mesmo dois. Posto que as Arcadas andam muito doente, suprimi o “são”. Começarei a desenhar o perfil pelo grupo de menor número. Já que hoje o enfadonho politicamente correto manda defender as minorias.  E também porque estou eu no grupo, o que me facilita, e em muito, discorrer sobre. E também porque é muito mais entusiasmante. E também porque eu apenas quis isso. Poderia ter começado pelo outro grupo e tudo bem também. Vamos a eles.

Apenas lembrando: esses gorgulhos involuntários que você agora se apercebe comprovam a  não-ortodoxa teoria de que é preciso divagar mesmo sobre as coisas, para que sejam-lhe companhia em momento tão sublime. Ou outra marca qualquer, visto que aqui não cabe o merchandising. Para uma dieta tão mal-equlibrada, só mesmo longos textos para acompanhar.

As Arcadas são a casa do franciscano. E ele desfila orgulhoso pelo Pátio, como se uma delas fosse-lhe dedicada. Não está, mas é. E ele a ama de uma maneira peculiar e única. É um amar-se tão grande que consta que Freud, quando desenvolveu a sua teoria do Ego, teve que desenvolver outra, para descrever um franciscano: o super-ego. Que mal cabe no Território Livre. A situação mais incômoda por que passa, visto que não tem problemas, mas apenas soluções, é acomodá-lo com os demais, em coexistência pacífica, embora em ebulição perene. Tradição e História permeiam suas atitudes e pensamentos, num rigor intransigente e absoluto: antes de tudo, as Arcadas. Posto que dela lhe germina a grandeza incipiente. Esse Universo Arcadas é o conteúdo inusitado desse continente ímpar chamado Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Que, convenhamos, é a excelência incomparável que sabemos. Transpor seus umbrais na condição de aluno abre mesmo as portas da percepção e do espírito. E brilha todo, porque alto pensa. É temerária a afirmação que são Deus. Mas que são a Sua semelhança, ah, isso são!

Lá pelos idos de fevereiro, a São Francisco é invadida, agora de maneira legítima e maravilhosa, por um amontoado de calouros. Com suas pastinha característica, os pais sorridentes debaixo do braço, cara de abestado, ávido por confirmar sua matrícula no “Direito usp”. Para alguns, certamente que algum deslumbrado familiar já lhe conseguiu a disputadíssima condição de “estagiário”, garantindo um brilhante futuro, antes mesmo que ele conheça o “campus”. A “facul”, a melhor da América Latrina, a faculdade do Castro Alves acaba por se mostrar nem tão boa assim. Tão cheia de problemas. Professores arrogantes. Ninguém a lhe guiar, segurando-o pela mão.  Depois, para se dedicar ao estafante trabalho de servir cafezinho no escritório não se permite nem ao menos quase que freqüentar aulas. Acaba aprendendo mesmo é no escritório, com o estagiário um ano “na frente”, no Direito. Talvez nas filas do Forum.  Lentamente, começa a achar muito estranho aquele pessoal todo que perambula pelo Pátio, que vai às intermináveis festas, Porão, festas, Jurídicos, festas, Peruada e outras festas mais. Com a sua promoção automática, vai se apercebendo a chegada da reta final, o quinto ano. E arrasta-se, consumido pelo escritório, já agora tendo conseguido ganhar realmente dinheiro, algo em torno de dois salários mínimos, e aquela outra sensação de que não agüenta mais, que é preciso acabarem logo esse cinco longos anos. Inclusive porque já nem conhece mais ninguém, dado que “daqui pra lá só tem calouros!”. Mesmo os seus pares, colegas de turma são lhe muito estranhos mesmo. Causa-lhe estranheza isso de umbiguismo, de adoração às Arcadas, quando o que lhe mais interessa é poder pegar o diploma, prestar a oab e ser efetivado. Depois disso, faculdade nunca mais! Eventualmente, levado pelo mais elementar dos instintos humanos, por mera curiosidade resolve então, num estertor agônico, experimentar olhar para o próprio umbigo. E constata que não o possui. Mais hora menos hora, vai descobrir que ele entrou nas Arcadas, mas as Arcadas não entraram nele.

Pode-se depreender então que são gêmeos não univitelínicos, idênticos. Tão diferentes em sua igualdade. Um gera artigo oficial permitindo-lhe explicitamente o culto ao Pindura. O outro tem medo de fiscal do cigarro. Para um o tempo é exíguo, o que para o outro é interminável. Uma crucial disparidade entre eu sou o mundo e eu sou do mundo. O querer ser diferente e o querer ser igual. Tantas e tantas diferenças a enumerar que é melhor deixar para o intuitivo de mentes tão peculiares.

Esse colossal desbalanço fraternal explica a unibanalização do Largo. A mesmice, a vulgaridade, o modorrento marasmo e uma equalização deplorável que prevalece faz lembrar as noites mal dormidas, ou nem dormidas, sonhando em estar na São Francisco. Afinal, para isso nem precisava de esforço algum. E empreguinho tem pra qualquer um, bastando querer trabalhar. E explica também porque nem ao menos houve uma via alternativa, entre o cansaço do funcionalismo público de um resgate e a sandice utópica de um forum. Há que se mudar as mentes franciscanas, antes que nos disponhamos a mudar o mundo. O Pátio é o nosso quintal e o nosso mundo. Ele pode e precisa ser mudado. Já para o outro mundo, as bandeiras de mudança são meras apelações hipócritas para conquistar o poder, sabemos todos.

Ainda assim se pode dizer que podem ser feitas ambas as coisas. Afinal, uma diretoria não deve ser  o reino de uma parcela que a elegeu, mas a representatividade do todo.  Nada contra apoiar e participar da Parada Gay. Mas, façam também um "Manifesto hetero" no Largo. Seria divertido. Tragam o monge tibetano Genoíno no Roda Viva do XI para versar sobre valores morais, tais como Honestidade, Lealdade e Verdade.  Mas, no dia seguinte, tragam a o Tiririca, para deleite geral. Ou um Marcos Caruso, franciscano, para nos contar sobre como ser grande, fora das Arcadas. Ou seja: contemplem a todos, é o que pede a representatividade conquistada de algo tão caro a nós todos, como o "XI de Agôsto". Contra as opressões que assomam um peito franciscano fundamentalista, a terapêutica é elementar e simples: um pouco de muita festa; animus jocandi a gosto (de XI, óbvio); vida inteligente pulsando no Pátio; e, claro, overdose de Buchecha ou equivalente, como deu na Peruada. Cabral, Cabral, segue  sua nau. No mais, a opulência das Arcadas alimenta o seu espírito.

É tempo então de parabenizar o Forum pela expressiva vitória, desejando que todos os nossos sonhos se tornem realidade.  É o que desejam e esperam os filhos de Francisco, da gestão que estará à frente do XI, nesse nosso tão cabalístico 20XI.

Arcadas, 24 de outubro, ano CLXXXIII

sábado, outubro 16, 2010

As Peruadas

Peruada é sempre igual. Por outro lado, cada uma delas é absolutamente ímpar e diferente. Caso esse conceito lhe seja estranho, atribua a explicação a isso: são coisas da São Francisco! E tudo estará pacificado e esclarecido. 
Sabe-se que, inclusive para facilitar a vida de adeptos, o Dia da Peruada será declarado "feriado universal no reino de Deus e adjacências". Projeto de iniciativa do nosso ínclito Legislador Tiririca. Da lavra, mas não de sua pena. Coisa feita por algum aceçor afeito às letras.
Por isso é que as imagens chegam à retina instantaneamente no presente, mas a História está lá, toda ela inscrita, em corações e mentes. 
Acompanhe:
O Grito do Peru
"Ha um parenthesis de alegria nesta cidade carrancuda de arranha-ceus sombrios, cada vez que a rapaziada da Escola promove as classicas festividades com que os "veteranos" recebem os Novos collegas. 
Tá! Ali tá o espírito

As passeatas que então se organisam, culminando na já celebre "peruada", deixam após si uma multidão de dentes á mostra, numa gargalhada gostosa ou num sorriso fino, ironico. 



É Peruada, X.I!

De uns annos a esta parte, sobretudo, o "trote" dos academicos tem assumido um carater todo especial, 
A Peruada precisa voltar  ao Pátio das Arcadas
que faz com que o espetaculo agrade a quantos o assistam e não apenas aos que delle participem: é que a passeata dos "calouros" vem dando opportunidade a uma série fecunda de "charges", principalmente politicas,
O Mote

 que têm, entre outras, a vantagem de pôr de lado umas tantas brincadeiras mais ou menos violentas, as quaes já provocaram reacções á altura.
De mais a mais, é bem facil aos moços lançar mão do "ridendo castigat mores".
Sempre presente

 Assim foi hontem. Depois dos indispensaveis preliminares, (banhos de farinha e de outras coisas de outras cores), que duraram cerca de um mez, os "veteranos" da Faculdade de Direito julgaram os seus "calouros" aptos a formarem com elles uma "frente unica", sahindo á rua uns e outros, de mãos dadas, para a "peruada". 
Ipiranga
 O cortejo, bizarro, excentrico, esquisito, carnavalesco, irradiando a satira por todos os lados, deixou o largo de São Francisco 
A São Francisco

ás 8 horas e meia, mais ou menos.
E até ás 13 horas o centro da cidade viveu momentos inesqueciveis. Bom humor, alegria franca; irnonia, fina, fininha, muito cortante...; passagens jocosas, de fazer rir a bandeiras despregadas, como se diz na rhetorica velha; e, pairando sobre tudo isso, ao lado de tudo isso, misturado com tudo isso, - o Ridiculo. Quando o ajuntamento do Largo São Francisco 
O Largo e o povo
conseguiu formar um cortejo que se espichava pela rua São Bento, e dobrava a rua Direita, vinha á frente da rapaziada um distico - "Faculdade de Direito" - encimando um veterano montando um burro. Burro de "verdade" e não calouro, como se possa pensar. Burro de verdade, cujas orelhas compridas quasi se misturavam com as barbas compridas do "cavalleiro". Uma turma de batedores abria alas. E em seguida uma banda de "bersaglieri", cheios de pennas, ar marcial, mas não muito, fazia ouvir a "Giovinnezza" a tres por dois. Mais um bando de veteranos e calouros, e, atrás, tres dos cavalleiros do Apocalypse (o quarto seria o da frente? ou o que fechava o cortejo?). Montados em cavallos bem esqueleticos, escolhidos a dedo: Peste, Guerra, Fome...
Depois disso, uma vacca, tambem "de verdade". Magra, como convém aos tempos de hoje. Têtas murchas, "murchissimas", faziam alguem, que estava na calçada, pensar, talvez, sem a menor malicia, em certos thesouros. A vacca se arrastava a custo. Sobre o seu dorso, uma enorme aranha.
Fazendo o que? Pergunta-se o que que ha e a resposta vem logo atrás da vacca: um "calouro" caracterisado de forma bizarra, camisa preta, cigarro no canto da boca, vasta cabelleira, saudando "á fascista", ladeado por dois leiteiros; um distico - "Assim falou o leiteiro: entésa o braço varonil, sacode a juba leonina, faze-te o "Dux do Brasil", e depois outro - "Sem a força, que valor a "lei...teria?" - Nas mãos, fazendo delle uma petéca, o estranho "Dux" brinca com um xuxú. Um calouro maltrapilho conduz um letreiro: "Assim, eu vou..." Logo depois vêm mais xuxús: é "miss Xuxú, ao lado de "miss Constituinte", num carro
Um caminhão de Buchecha
puxado por vinte e um calouros com as faixas dos Estados.
Ha ainda - estranha inspiração! - mais xuxús: em outro carro vê-se um homem que dorme, á sombra de um carramanchão de xuxús. Vela o seu sonho um calouro, "culote" e perneiras, busto nú, e abanando as moscas com uma vassoura. E ahi ainda um distico - Dorme, que eu velo, seductora imagem..."
Sobre uma carroça ha dois militares que brigam, brigam, e de repente se abraçam, se beijam, e tornam a brigar. Tambem alli um cartaz: "Amigos, amigos... negocios a parte." "E mais este - "Devemos agir "Chinicamente" - o "h", riscado com lapis vermelho.
Outra carroça é um "carro allegorico" dedicado ás calouras. 
Calouras

Trás o distico - "Advocacia das calouras - especialistas em direito de familia...", e vem cheio de panellas, berços, bebês. Sobre uma carroça está sentado um calouro, "disfarçado" de lente. Lê um formidavel livro, ao lado do seguinte cartaz: "Felizes os pobres de espirito".
Ha um truculento militar a cavallo. 
Se tivéssemos essa segurança todos os dias...

Em vez de dragonas tem - ainda... - xuxús. Fuma e bebe.
Sobretudo bebe.
E por fim outro grupo. 
São João
Carregado por meia duzia de rapazes, um estandarte, onde se vê uma fieira desenrolada, tendo na ponta um pião. "Sem commentarios", diz ainda esse estandarte. Fechava o cortejo a "legião dos condemnados": uma porção de calouros semi-nús.
Quando a passeata entra na rua Direita espoucam rojões. E ha uma choradeira geral em frente ao palacio do governo, 
Clamor em frente à Câmara, para um bando de surdos
onde os moços foram render suas homenagens. Choraram muito e dalli prosseguiram: ruas João Briccola, Libero, Viaduto do Chá, praça da Republica, 7 de Abril, Viaducto e largo S. Francisco, onde o cortejo se dissolveu, após uma "maxixada" geral".

Transcrito de "O Estado de São Paulo"

Revista O “XI de Agôsto”
Ano XXX, maio de 1932, Num. 1, pp. 110-112.

Como queríamos demonstrar: os anos passam, mas As Peruadas ficam. Todas imensamente diferentes em sua paradoxal igualdade.  
Aqui, a letra completa da música:
Arcadas, XVI de outubro, anno CLXXXIII