domingo, fevereiro 14, 2010

O vampiro das Arcadas


Sempre conto por aqui alguns dos incontáveis episódios pitorescos e peculiaríssimos das Arcadas. Tenho tido notícias que recentemente o negócio, a onda do momento, o in é essa invasão de vampiros que assola a Humanidade.  Nada a ver com morcegos que vagueiam na calada da noite, com seus radares móveis, que mais parecem os inspiradores dos guardas de trânsito do Detran. São vampiros vampirescos, gostam mesmo é de sangue, têm caninos de lobos, que mais propriamente deveriam se chamar lobinos. E adoram um pescoço. Confesso que um belo pescoço feminino também me atrai, muito embora não seja vampiro. Presumo. Já que minha preferência nunca foi para mordê-lo.

O que não sabem é que essa coisa toda se iniciou mesmo nas Arcadas. Não apenas o Santo Graal se encerra nesse Jardim De Pedras, mas uma infinidade de outras coisas. Inclusive vampiros. Vamos a eles.

É historicamente de domínio público que filhos de latifundiários eram mandados para essas Arcadas, com o fito de perpetuar poderes locais, localmente espalhados por esse Brasil afora.  Noutros tempos o fundamento do domínio era outro, divino até. Depois, com o Estado, ficou mais politicamente correto que fosse o Direito. Sempre sabendo que o Direito nada mais é do que uma verborragia alucinógena que faz parecer Justiça aquilo que, no mais das vezes está mui distante dela, sendo muito mais o conveniente alcunhado de “justo” Que seja. Dominando também o Direito apreendido nesses assentos centenários, adicionando–o ao tudo mais que não era direito, saíam daqui os meninos, mui espertinhos, além de brilhantes. Deixando sempre suas toscas memórias inscritas nas Tábuas. Absolutamente brilhantes. Sem comparações.

Vinham eles aos treze, doze anos de idade. Poder-se-ia até considerar um trote violento, mandar um neo-púbere ter contato com a Filosofia de Julius Frank, a Política de Líbero Badaró, a Poesia de Fagundes Varella. Sem contar as cantilenas de Direito Canônico, que, cada aula, equivalia a XI chibatadas. Eram opcionais, mas preferidas. Claro que a gurizada toda preferia as chibatadas à chatice das aulas. O Pátio era, como sempre, um encanto para os olhos, balsamo para o coração, apesar do Pelourinho. Um sofrimento útil e compensador.  O certo é que vinham cair nesse Ninho de Águias. Para tornar-se uma delas, no depois.

Futuros calouros que aportavam por essa imensa São Paulo, com suas três ruas e XI mil almas e que tivesse, por um desígnio divino, a idade de XI anos eram recebidos e tratados como um Dalai Lama. A reverência e o respeito advinham por óbvio de sua idade nesse cabalístico e sacratíssimo número redondo franciscanamente, o XI. A referência ao Dalai Lama porém, em nada tem a ver com a nossa intensa e sabida influência cultural com as Índias. As índias que conhecíamos por aqui, conhecia-mo-las mesmo era por detrás das moitas, em suas vergonhas saradinhas e sempre em flor, a descoberto.  Nas quais chafurdava-se feito beija-flores na primavera. E em todas as outras estações, que o mel é doce e a carne, fraca. Culturamente sempre muitíssimo acima da média, franciscano demonstrava-a via animus jocandi. Por isso o Calouro XI era então lançado nas poças de água do Largo, ainda sem o asfalto atual. Que, mesmo sendo atual, ainda permite algumas poças. Na Terra da Garoa, poça era o que não faltava. Consequentemente, lama. O “dá-lhe lama”, que rapidamente passou para a corruptela Dalai Lama. Coisa de franciscanos... Caso duvide, peça pro Marchi te contar a história do pic-pic... Depois de ser lançado à lama, não a do Dalai, mas ao barro mesmo, o festivo calouro era encaminhado ao Poço do Zuniga, que ficava na distante, suburbana Praça da República. Ali, o Batizado, recebendo o venerável espírito franciscano, motivo de outro capítulo dessa interminável e adorável História das Arcadas. Hoje o Batizado se faz na Sé.

Nos dias de hoje, calouros aportam nessa Sanfran devidamente acompanhado dos pais, como se fossem débeis mentais. Fica claro que os pais não conhecem a cria. Seu filhinho para poder chamar as Arcadas de “também” sua, foi melhor do que 98% daqueles que sonhavam com isso. Será que ele não sabe preencher um formulário de matrícula? Sua impertinente presença lhes impede de desfrutar das maravilhas de ser calouro franciscano. Mas dá até prá entender os velhos. Querem mesmo entrar por essas Arcadas, portando o filho como se fora seu troféu, como se fora ele próprio. Sonhos. Delírios. Freud explica isso. Acho que explica. Se não explica, deveria. 

Naqueles idos de priscas eras, calouro aportava aqui sozinho, com sua indefectível maleta. Por que o calouro sempre tem uma maleta? A despedida era feita em sua cidade de origem. Feriado Municipal. Um seu ilustre filho iria para a Capitar, estudar na Faculdade. Por isso assim, a Sanfran sem nome. Não precisava. Nunca precisou. E o garotão, na despedida tinha direito à Banda de música, nada comparável à poderosa BAISF. Tinha discurso emocionado do Padre. Emoção sorrateira e hipócrita, advinda mesmo é da perda de um dos seus meninos, maicojequisoniamente falando. Por fim, o Coronel dava a benção final, ansiando que o filhote retornasse logo, para ampliar as avenças da família e a glória da cidade. Tal pequerrucho aportava em São Paulo, montado em seu pequeno animal. Eram jumentos e burros. Caso fossem jumentos, o estacionamento deles ficava próximo ao Cemitério da Consolação, que abrigava a vívida Marquesa de Santos, Patrona das Arcadas. Parece que lá eles, movidos por um corporativismo animal, resolveram abrir uma faculdadezinha também. Se fossem burros, já o estacionamento eram mais longe, em Perdizes. Franciscanos gostavam e gostam muito de montar aquelas burrinhas. Um monte alegre até. Parece que coordenados por um agiota, também personagem de uma das estórias já contadas.

O certo é que o calouro chegava nesse Ninho de Águias sexualmente zerado. Lembrando que as próprias mãos não movem o marcador. Com o atenuante de ter os seus XI aninhos. Uma pureza. Logo, logo ele teria a sua vezinha. A necessidade faz o ladrão. Essa necessidade fez o franciscano criar a Peruada (oba!).  Outro capítulo dessa Faculdade da História e de estórias. Mas estamos aqui relatando o surgimento do calouro-vampiro das Arcadas.

Veteranos franciscanos sempre receberam muitíssimo bem os seus calouros.  Afinal, são a continuidade da estirpe. Nada menos que isso. O calouro sou eu amanhã. Por causa disso, era premente introduzi-lo na vital arte da introdução. As festas na cidade, baladas, nada! Uma dificuldade! Afora algumas esparsas cabritas ou bananeiras, restavam então as sórdidas festas nas repúblicas dos alunos. Verdadeiro exército. A santa presença feminina, apenas na fértil imaginação franciscana. Não foi à toa que ali se cultivou muito a Filosofia. Sabem todos que o Concreto nada mais é do que a materialização do Nada. Que o que mais o Homem busca na Mulher é esse vazio. Não o tendo, cria desse Nada a Filosofia. Que Nada é, pois. A busca de um Nada buscando preencher a falta de um não preenchimento de um outro Nada. Haja filosofia! Mas, para essa Festa da Penetração de Calouro era preciso resolver o assunto. E a solução para isso hoje deve causar convulsões nos politicamente corretos, mas não podemos nos esquecer que estamos em 1840, caro leitor dessas lembranças psicografadas. Havia o Mercado de Escravos, que permanece até hoje, no Anhangabaú. Não mais como Mercado. Muito menos de escravos. Mas era lá que franciscanos arrematavam, por alguns cruzados uma mucaminha, meninota, que, no depois, trabalharia em uma das repúblicas.  E o Calouro XI era então presenteado. A pequena mucama seria açoitada pelo chicote franciscano, na intimidade do seu Pelourinho alcoviteiro. Lá fora, em uníssono, calouros cantavam então, ao poderoso som da BAISF: ô, ô, Toda Poderosa Sanfran! Por isso, surge então outra expressão, tipicamente franciscana: vestir e suar a camisa das Arcadas!

E foi nesse vampiresco ano de 1869 que toda a coisa se ocorreu. Estava a menina em seus dias de reclusão. Mulher ainda não tinha conquistado o direito à TPM. A solução era o mais completo isolamento. Como todo o conhecimento desse assunto era apenas teórico, o nosso calouro XI confundiu um pouco as coisas e começou a tralha da maneira mais temperada possível: foi com a boca na botija! Não se sabe ao certo se por confusão teórica ou até inspirado pelo ano que corria, o certo é que foi o errado. Ou, ao menos, impróprio. Todo o resto lhe foi muito proveitoso. Mas, ficava-lhe mesmo na mente aquele gosto adocicado nos lábios, causando-lhe verdadeira epifania. Veteranos carregavam o Calouro XI, uma verdadeira festa mesmo, a Festa da Penetração. Desfilavam o orgulhoso calouro por todas as três ruas de que se compunha a cidade de São Paulo, terminando por retornarem todos às Arcadas.
O Calouro não compartilhou aquele estranho sentimento com os demais, mantendo-o um segredo seu. Apenas que, em todas as festas que se tornavam possíveis, as Peruadas que aconteciam toda penúltima sexta-feira de outubro, o dito Calouro, nas noites de lua cheia, elegia uma guria para lhe sugar o sangue. Porém, não mais daquele lugar originário, mas do pescoço. Local mais refrigerado e acessível. E o sangue mais delicioso e adocicado ainda, posto que fresco. Essas notícias corriam rápido pela pequenina São Paulo. Não muito rápido, pois extrapolaria as dimensões diminutas dela. Eram apenas rápidas. 

Todos queriam saber quem era o chupa cabra que abocanhava os pescocinhos das meninas da cidade. Veja lá que não havia ainda Conde Drácula, nem séries de TV, nem filmes de Hollywood. Como todo sempre, as Arcadas protagonizavam a História. Mesmo que não soubessem disso. Formaram uma comissão, grupo que resolveu caçar o nosso vampiro tupiniquim. Em algum livro de bruxarias, ficaram sabendo que vampiros morrem se lhes fincar uma estaca de madeira no coração. Ou ainda uma bala de prata. Acontece que, nesse nosso Brasilzão de ouro não se conhecia a prata e muito menos a bala. Isso era coisa de lugares onde existia  industrializadas, o que só ocorreria aqui, por volta de depois da festejada e justa queda do Muro de Berlim A proibição da indústria datava da Maria, a Louca. Coisa de uns poucos duzentos anos antes. Eita povinho devagar! Eita Rubinho, o Tá-lento! Mas, enfim, restava então a estaca. Um dia, em uma das comezinhas e insossas festas, um Baile na cidade, por fim, depararam-se com o nosso já-não-mais-calouro franciscano a se deliciar com o banquete oferecido por um lindo pescoço feminino. Não no Baile em si, mas nas escuras várzeas que circundavam a cidade. Puseram-se então a correr atrás do infeliz, sempre com a estaca preparada. Conta-se que, na correria, um dos alunos inadvertidamente aciona o gatilho de sua arma, dando um tiro no próprio pé. Isso sem a expressão simbólica da expressão de ‘dar-se um tiro no pé”. Apenas um tiro no pé. Mesmo. Ao invés de ficar chorando o leite derramado e o pé amputado, o franciscano depois escreveu Espumas Flutuantes. Belos Poemas, né? Bom, voltando. Sempre voltando de uma estória para a estória presente, a contada agora. No corre que corre, o vampirinho tropeça e cai. Por cima dele, caem também os perseguidores, Um verdadeiro scrum, muito antes de ingleses terem criado o rugby. E a estaca foi fincada. Não no coração, mas em direção a ele. Pela via mais longa: a retal. A estaca empalou o nosso pobre franciscano. E subiu, subiu, transfixando tudo, até tocar, de leve o coração. E fez-se verdade a magia. Com o simples tocar da estaca o coração, o franciscano desvampirou-se, tornou-se um simples mortal, sem essa tara sanguinolenta de sugar pescoços por ai afora. Isso deu então origem a tudo o mais que se inventa por ai.

Acontece que, ao ser empalado pela estaca, o nosso franciscano teve outra epifania. Não é que ele gostou ? Apoderou-se da estaca e deu-lhe até um nome: a Mão-de-Deus.  Tratava-a com um carinho desmedido, feito a clientes de Urologistas, a quem mandam presentes e cartões de feliz-aniversário. Como nessas estórias de vampiros, bruxas, há muita magia e coisas inexplicáveis, os poderes da estaca agora com nome, ficaram latentes, por mais de cento e cinqüenta anos. Parece até aqueles finais de filmes de terror, cuja última cena mostra um naco de terra se movendo, por sobre uma tumba. Daí vem o filme Parte Dois.

Fecham-se as cortinas e pulam-se 150 anos. Em 2005 houve uma Reforma no prédio. Na realidade o que almejavam é impedir que fizéssemos a Peruada aqui dentro. Muita inveja lá nos de fora. Nada no País dura, exceto a mediocridade e as conseqüentes maracutaias. Nada presta. Nada com que se orgulhar, os brasileiros. Diferentemente dos franciscanos, cujas Arcadas são seu tesouro maior e orgulham-se de tudo que lhes diz respeito. Invejam nossas Tradições. E, principalmente, porque temos Tradições. Querem destruí-las. Com isso, as escavações puseram à mostra uma porção de coisas que se julgava mito e lenda: o túnel do Porão até a igreja ao lado; esqueletos enterrados juntos, muito juntos. Mostrando que frades também davam as suas. As colas que o Ruy Barbosa usou nas provas; um cofre abarrotado de dólares, pertencente aos comunistas, já que o Partidão impede que canhestros adeptos demonstrem qualquer paixão pelo vil metal, embora o tenham, em profusão. Issoi foi também a origem das malas de dólares que ainda hoje utilizam, para comprar a tudo e a todos, no aparelhamento almejado e conseguido; uma carta que Karl Max enviou ao então presidente do XI, dizendo que tudo aquilo, aquelas idéias erradas eram piada e pedindo prá mandar mais ópio, prá poder continuar o segundo volume. E também um pouco mais de dinheiro, que ele estava sem. Já estava até vivendo da prostituição da filha. Era preciso sustentar o companheiro, prá surtar em mais idéias escrotas.

Afora essas e outras coisinhas, descobriu-se também a Mão-de-Deus que ressurgiu nas Arcadas. Porém, de uma maneira peculiar, nova. Ela estava muito bem guardada e saiu do armário daquele então calouro empalado. Junto com ela a epifania começou a aplicar seus resultados vários em seus estranhos poderes. Franciscanos, mestres no animus jocandi, sempre expressaram o brilhantismo de suas mentes enfaticamente brilhantes nas ações e obras. Já esses, primam pelo brilho não mais das mentes, mas das plumas, paetês e outros quetais, aparentando até que a mão possui um excelso e altivo poder de abrir todos os armários. Com isso, hoje pululam no Pátio uma escória de não mais vampiros, posto que extintos pelo toque da estaca, mas uma verdadeira reversão na mão da direção retal e na ordem natural das coisas, contrariando até a música do Raul Seixas, “Rock das aranhas”. Se antes a perereca era o prato principal do sapo, agora o é da sapa. As cobras se auto-devorando, em verdadeiro espetáculo de canibalismo. Partimos do Homo sapiens, para o Homo farbens. Agora temos o Homo homo? Depois, a extinção? Me inclui fora dessa! Eu, que sou um mero calouro da I Turma, de 1828 não entendo mais nada. Sempre fiz o meu papel, cumprindo a minha parte, ponteando a Marquesa. Ou melhor: entendo, mas dessa festa franciscana eu não participo. Pode sobrar prá mim uma dessas novidades e eu sou muito do conservador, quando o assunto é lantejoulas, purpurinas, babados e pregas. Apenas conto, como arte do ofício.

Roy Babbosa
Psicografado por Luiz Gonzaga
AAArcadas, XI de fevereiro, CLXXXIII 

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