sábado, outubro 16, 2010

As Peruadas

Peruada é sempre igual. Por outro lado, cada uma delas é absolutamente ímpar e diferente. Caso esse conceito lhe seja estranho, atribua a explicação a isso: são coisas da São Francisco! E tudo estará pacificado e esclarecido. 
Sabe-se que, inclusive para facilitar a vida de adeptos, o Dia da Peruada será declarado "feriado universal no reino de Deus e adjacências". Projeto de iniciativa do nosso ínclito Legislador Tiririca. Da lavra, mas não de sua pena. Coisa feita por algum aceçor afeito às letras.
Por isso é que as imagens chegam à retina instantaneamente no presente, mas a História está lá, toda ela inscrita, em corações e mentes. 
Acompanhe:
O Grito do Peru
"Ha um parenthesis de alegria nesta cidade carrancuda de arranha-ceus sombrios, cada vez que a rapaziada da Escola promove as classicas festividades com que os "veteranos" recebem os Novos collegas. 
Tá! Ali tá o espírito

As passeatas que então se organisam, culminando na já celebre "peruada", deixam após si uma multidão de dentes á mostra, numa gargalhada gostosa ou num sorriso fino, ironico. 



É Peruada, X.I!

De uns annos a esta parte, sobretudo, o "trote" dos academicos tem assumido um carater todo especial, 
A Peruada precisa voltar  ao Pátio das Arcadas
que faz com que o espetaculo agrade a quantos o assistam e não apenas aos que delle participem: é que a passeata dos "calouros" vem dando opportunidade a uma série fecunda de "charges", principalmente politicas,
O Mote

 que têm, entre outras, a vantagem de pôr de lado umas tantas brincadeiras mais ou menos violentas, as quaes já provocaram reacções á altura.
De mais a mais, é bem facil aos moços lançar mão do "ridendo castigat mores".
Sempre presente

 Assim foi hontem. Depois dos indispensaveis preliminares, (banhos de farinha e de outras coisas de outras cores), que duraram cerca de um mez, os "veteranos" da Faculdade de Direito julgaram os seus "calouros" aptos a formarem com elles uma "frente unica", sahindo á rua uns e outros, de mãos dadas, para a "peruada". 
Ipiranga
 O cortejo, bizarro, excentrico, esquisito, carnavalesco, irradiando a satira por todos os lados, deixou o largo de São Francisco 
A São Francisco

ás 8 horas e meia, mais ou menos.
E até ás 13 horas o centro da cidade viveu momentos inesqueciveis. Bom humor, alegria franca; irnonia, fina, fininha, muito cortante...; passagens jocosas, de fazer rir a bandeiras despregadas, como se diz na rhetorica velha; e, pairando sobre tudo isso, ao lado de tudo isso, misturado com tudo isso, - o Ridiculo. Quando o ajuntamento do Largo São Francisco 
O Largo e o povo
conseguiu formar um cortejo que se espichava pela rua São Bento, e dobrava a rua Direita, vinha á frente da rapaziada um distico - "Faculdade de Direito" - encimando um veterano montando um burro. Burro de "verdade" e não calouro, como se possa pensar. Burro de verdade, cujas orelhas compridas quasi se misturavam com as barbas compridas do "cavalleiro". Uma turma de batedores abria alas. E em seguida uma banda de "bersaglieri", cheios de pennas, ar marcial, mas não muito, fazia ouvir a "Giovinnezza" a tres por dois. Mais um bando de veteranos e calouros, e, atrás, tres dos cavalleiros do Apocalypse (o quarto seria o da frente? ou o que fechava o cortejo?). Montados em cavallos bem esqueleticos, escolhidos a dedo: Peste, Guerra, Fome...
Depois disso, uma vacca, tambem "de verdade". Magra, como convém aos tempos de hoje. Têtas murchas, "murchissimas", faziam alguem, que estava na calçada, pensar, talvez, sem a menor malicia, em certos thesouros. A vacca se arrastava a custo. Sobre o seu dorso, uma enorme aranha.
Fazendo o que? Pergunta-se o que que ha e a resposta vem logo atrás da vacca: um "calouro" caracterisado de forma bizarra, camisa preta, cigarro no canto da boca, vasta cabelleira, saudando "á fascista", ladeado por dois leiteiros; um distico - "Assim falou o leiteiro: entésa o braço varonil, sacode a juba leonina, faze-te o "Dux do Brasil", e depois outro - "Sem a força, que valor a "lei...teria?" - Nas mãos, fazendo delle uma petéca, o estranho "Dux" brinca com um xuxú. Um calouro maltrapilho conduz um letreiro: "Assim, eu vou..." Logo depois vêm mais xuxús: é "miss Xuxú, ao lado de "miss Constituinte", num carro
Um caminhão de Buchecha
puxado por vinte e um calouros com as faixas dos Estados.
Ha ainda - estranha inspiração! - mais xuxús: em outro carro vê-se um homem que dorme, á sombra de um carramanchão de xuxús. Vela o seu sonho um calouro, "culote" e perneiras, busto nú, e abanando as moscas com uma vassoura. E ahi ainda um distico - Dorme, que eu velo, seductora imagem..."
Sobre uma carroça ha dois militares que brigam, brigam, e de repente se abraçam, se beijam, e tornam a brigar. Tambem alli um cartaz: "Amigos, amigos... negocios a parte." "E mais este - "Devemos agir "Chinicamente" - o "h", riscado com lapis vermelho.
Outra carroça é um "carro allegorico" dedicado ás calouras. 
Calouras

Trás o distico - "Advocacia das calouras - especialistas em direito de familia...", e vem cheio de panellas, berços, bebês. Sobre uma carroça está sentado um calouro, "disfarçado" de lente. Lê um formidavel livro, ao lado do seguinte cartaz: "Felizes os pobres de espirito".
Ha um truculento militar a cavallo. 
Se tivéssemos essa segurança todos os dias...

Em vez de dragonas tem - ainda... - xuxús. Fuma e bebe.
Sobretudo bebe.
E por fim outro grupo. 
São João
Carregado por meia duzia de rapazes, um estandarte, onde se vê uma fieira desenrolada, tendo na ponta um pião. "Sem commentarios", diz ainda esse estandarte. Fechava o cortejo a "legião dos condemnados": uma porção de calouros semi-nús.
Quando a passeata entra na rua Direita espoucam rojões. E ha uma choradeira geral em frente ao palacio do governo, 
Clamor em frente à Câmara, para um bando de surdos
onde os moços foram render suas homenagens. Choraram muito e dalli prosseguiram: ruas João Briccola, Libero, Viaduto do Chá, praça da Republica, 7 de Abril, Viaducto e largo S. Francisco, onde o cortejo se dissolveu, após uma "maxixada" geral".

Transcrito de "O Estado de São Paulo"

Revista O “XI de Agôsto”
Ano XXX, maio de 1932, Num. 1, pp. 110-112.

Como queríamos demonstrar: os anos passam, mas As Peruadas ficam. Todas imensamente diferentes em sua paradoxal igualdade.  
Aqui, a letra completa da música:
Arcadas, XVI de outubro, anno CLXXXIII

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